Os desafios contemporâneos do judiciário

Deputado Federal Chico Alencar (PSOL, RJ)

Deputado Federal Chico Alencar (PSOL, RJ)

Fonte: Fórum – Revista da Associação dos Magistrados do Estado do Rio de Janeiro

Em entrevista exclusiva, o deputado federal Chico Alencar (PSOL-RJ) analisa o comportamento da sociedade atual e faz algumas reflexões sobre o papel do Judiciário nesse novo contexto.

Com o lema “seja a mudança que você quer no mundo”, inspirado no lendário pacifista indiano Mahatma Gandhi, o deputado federal Francisco Rodrigues de Alencar, mais conhecido como Chico Alencar (PSOL-RJ), escreve sua história na política erguendo a bandeira da luta por direitos igualitários em todas as esferas da sociedade, com atenção especial à população menos favorecida. Nascido no bairro da Tijuca, zona norte da capital, Chico Alencar iniciou sua carreira na área da educação e lecionou, durante mais de duas décadas, em colégios da rede pública e particular do Rio de Janeiro. Ele é formado em história pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e é professor licenciado de Prática do Ensino de História na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Entre 1987 e 1988, Alencar dirigiu a Coordenadoria de Apoio ao Educando, da Secretaria Municipal de Educação, e foi responsável por encaminhar a primeira eleição direta das direções das escolas públicas do Rio de Janeiro. No ano seguinte, em 1989, teve início a sua carreira política com o cargo de vereador pelo PT-RJ, durante dois mandatos. Naquela época, Alencar foi um dos líderes na luta pela moralização da Câmara dos Vereadores e participou da elaboração da Lei Orgânica e do Plano Diretor da Cidade, na qual apresentou sugestões e emendas reivindicadas pelos movimentos populares.

Quando foi eleito deputado estadual, no ano de 1998, Chico Alencar presidiu a Comissão de Direitos Humanos e foi vice-presidente da Comissão de Educação da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj). À frente da Comissão de Direitos Humanos, Alencar acompanhou o atendimento aos atingidos pelas chuvas no Rio de Janeiro, em 2010, e as ações policiais no Complexo do Alemão, em 2007. Na Comissão de Educação e Cultura, o deputado conseguiu aprovar mais de 30 Projetos de Lei, que contemplam, principalmente, o aprimoramento dos serviços públicos e da qualidade de vida dos cidadãos.

Em 2002, novamente pelo PT, Chico foi o escolhido dos cariocas para exercer o cargo de deputado federal, sendo reeleito em 2006 – já pelo PSOL – e repetiu o feito em 2006 e 2010 – na última eleição, Alencar recebeu a segunda maior votação do Estado, totalizando 240.724 votos. Por seu trabalho desenvolvido nesses mandatos, Alencar obteve duas vezes o “Prêmio Congresso em Foco” (em 2009 e 2010) e está incluído na lista das “100 cabeças do Congresso”, elaborada pelo Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap).

Atualmente, o deputado integra a Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara e o Conselho de Ética, onde foi um dos integrantes mais ativos na época da investigação sobre o “mensalão”, e é suplente da Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável. Alencar também é autor de 26 livros, a exemplo de “História da Sociedade Brasileira” (com os escritores Marcus Venicio Ribeiro e Lucia Carpi – Editora Ao Livro Técnico), “Brasil Vivo” (com Marcus Venicio Ribeiro e Claudius – Editora Vozes), “BR-500” (Editora Vozes) e “Educar na Esperança em Tempos de Desencanto” (com Pablo Gentili – Editora Vozes), além de infantojuvenis das coleções “Viramundo” e “Educar nos Valores”. Nessa entrevista, Chico Alencar reflete sobre a atuação do Judiciário diante da complexidade da sociedade brasileira atual.

 Fórum – A necessidade de uma reforma política ganhou proporções ainda maiores com as manifestações que tiveram início em junho do ano passado. Quais seriam as principais mudanças para atender os anseios da sociedade?

Chico Alencar – Reforma Política digna desse nome deve ser feita com forte participação popular. É preciso fortalecer o diálogo com as ruas sobre essa temática, e já há uma iniciativa popular de lei, bancada pelas mesmas e muitas entidades que implementaram o “Ficha Limpa”, cuja aprovação faria avançar bastante nossa democracia. Um dos principais problemas do nosso sistema político é seu financiamento empresarial. A política institucional no Brasil é dependente dos investimentos, com perspectiva de retorno, feitos por banqueiros, empreiteiras e outras grandes empresas. Elas costumam obter, em contratos com os governos que ajudam a eleger, oito vezes mais do que investiram na campanha! A decisão do STF que declara inconstitucionais essas doações é um fato muito positivo. Esperamos que o ministro Gilmar Mendes, que pediu vistas do processo, apresente em breve seu voto, para que prevaleça a posição da maioria do tribunal, já anunciada, e a vedação das doações de empresas valha já para as eleições deste ano. Como lembrou o Ministro Marco Aurélio, “pedir vista não é perder de vista”…

Fórum – Com o visível aumento no interesse pela política, do qual os cidadãos mais jovens são a maioria, como a magistratura brasileira pode mostrar sua importância para a manutenção da democracia?

Chico Alencar – Espero que se confirme mesmo essa sensação de crescimento do interesse pela política. Às vezes, parece-me que é para rejeitá-la. O Poder Judiciário tem a responsabilidade de se abrir à participação popular em todas as suas instâncias, para que se realize o preceito constitucional de que “todo o poder emana do povo”. É essa abertura democrática a fonte de legitimidade do exercício de qualquer poder na nossa República. Isso exige que a magistratura construa e valorize espaços institucionais de participação social no Judiciário, tanto na gestão dos tribunais (conselhos sociais, ouvidorias, informação transparente e de fácil acesso etc.) como também em cada processo, em cada conflito levado à apreciação do magistrado.

Fórum – De que maneira o Poder Judiciário pode estreitar os laços com a sociedade?

Chico Alencar – É preciso superar, em especial, as estruturas que dificultam a participação das minorias e das classes sociais mais pobres. Além das enormes carências de estrutura da nossa Defensoria e de outras barreiras econômicas aos “desvalidos” no Judiciário, o juiz ou juíza deve ter sensibilidade, por exemplo, para adotar uma linguagem mais simples e informal, que propicie o entendimento e o diálogo real com as partes envolvidas.

 Fórum – Qual é a função do magistrado nesse contexto?

Chico Alencar – “As leis não bastam. Os lírios não nascem das leis”, dizia Carlos Drummond de Andrade. É claro que as leis são importantes, mas as manifestações populares têm mostrado que a cidadania brasileira quer materialização de direitos, e não simplesmente garantias formais vazias. Como dizem há décadas os movimentos populares de luta por moradia: “Não queremos o ‘direito à moradia’, queremos a moradia!”. É claro que o Judiciário não é capaz de resolver, sozinho, os graves problemas sociais do nosso país, que têm gerado tanta indignação justa com as instituições. Porém, os magistrados podem dar uma grande contribuição se, ao invés de corroborarem com a criminalização das lutas e dos movimentos sociais, reconhecerem-nos como sujeitos coletivos de direitos, fundamentais para a construção de democracia real no nosso país.

Fórum – Cite alguns exemplos.

Chico Alencar – Para dar um concreto e recorrente: como um magistrado deve decidir, diante de uma ocupaçãode imóvel ocioso por um movimento de trabalhadores em luta por moradia? É legítimo que dê uma liminar de reintegração de posse sem ouvir os ocupantes, como tantas vezes acontece? Sem observar se o proprietário cumpria o dever jurídico de dar ao imóvel uma função social? É justo que um juiz ordene à polícia despejar famílias pobres de um imóvel, à força, sem ter tentado construir um processo de diálogo e negociação entre as partes e os Poderes Executivo e Legislativo, para encontrar uma solução pacífica para o conflito, que garanta os direitos previstos na nossa Constituição? Os juízes não podem permitir a redução de seu nobre papel ao de escribas do poder. A jurisdição não pode ser um mero rito formal de legitimação da violência política contra os setores marginalizados, contra os movimentos sociais. O papel do magistrado, então, não é asfixiar conflitos sociais legítimos. É permitir que os conflitos se expressem no Judiciário, de modo plural, e buscar saídas justas, emancipadoras, para eles.

 Fórum – O acúmulo de processos é um problema recorrente na rotina dos magistrados, e essa sobrecarga acaba afetando diretamente no seu desempenho profissional. Como o Poder Judiciário pode valorizar o trabalho do magistrado?

Chico Alencar – É preciso ir às causas dessa proliferação de processos. Na medida em que os direitos são negados a amplas parcelas da população brasileira, devido a injustiças estruturais que o Estado não enfrenta, a luta por esses direitos termina buscando um “desafogo” no Judiciário. Alguns gargalos são externos, mas outros podem ser encontrados também dentro deste Poder. Um deles é o baixo uso, pelas partes, de instrumentos coletivos previstos em documentos legais como o Estatuto da Cidade, e certo desconhecimento ou resistência a eles, entre alguns magistrados. A realização mais ampla da tendência contemporânea à coletivização do processo poderia contribuir para que a atuação do Judiciário seja mais eficaz, garantidora de direitos, e também para reduzir a sobrecarga de trabalho não apenas dos magistrados, mas de todos os outros trabalhadores desse Poder, dos demais servidores aos estagiários. Fortalecer mecanismos de mediação coletiva de conflitos é fundamental. Uma iniciativa promissora, que poderia inspirar muitas outras, é o Fórum de Conflitos Fundiários do Conselho Nacional de Justiça, que avança na promoção da abordagem da mediação coletiva. Este fórum vem sendo elogiado por especialistas e entidades sociais, como aquelas reunidas na JusDH – Articulação Justiça e Direitos Humanos, que busca contribuir para a democratização da Justiça. Esperamos que os tribunais desenvolvam mais iniciativas como essa, estreitem as relações com a sociedade civil e as universidades, buscando conhecer, difundir e implementar novas práticas, bem como oferecer aos magistrados e demais servidores mais possibilidades de formação, nessa nova mentalidade de abertura à participação ampla dos sujeitos coletivos de direitos.

 

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