JOTA | A afirmação negra no Ministério Público

Fonte: JOTA info
Por Sheila de Carvalho*, Flavio Siqueira Júnior*, Rodnei Jericó** e Daniel Teixeira***
*Advogada e advogado da Conectas Direitos Humanos
**Advogado do Geledés – Instituto da Mulher Negra
***Advogado do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades ­(CEERT)
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Nos ambientes do sistema de justiça, nos fóruns, nas salas de audiência, gire o pescoço e veja quantos negros estão presentes. Quantos cumprem o papel de juiz? Quantos são promotores? Quantos são defensores? E quantos estão sentados no banco dos réus? Esse movimento crítico do olhar, apelidado pelos pesquisadores do racismo de “teste do pescoço”, tende a demonstrar o que estamos condicionados a ignorar diariamente: a ausência de representação e diversidade em espaços institucionais que fundamentam sua existência em princípios e normas constitucionais.

Vale a pena recordar: em 1988, cem anos depois do fim da escravidão, a Constituição elevou a igualdade e a justiça como valores supremos do Estado Democrático de Direito brasileiro. Ainda assim, num País de maioria negra, fotos da realidade contemporânea continuam registrando a grave desigualdade e o chocante racismo em todos os espaços da vida pública.

O censo do Poder Judiciário, publicado pelo CNJ em 2014, escancarou essa ferida da desigualdade racial no sistema de justiça. O levantamento apontou o que já é nítido: 82,8% dos juízes são brancos. Apenas 1,4 % se autodeclaram pretos e 14,2%, pardos. Vale salientar que a desigualdade racial ainda se soma à profunda desigualdade de gênero – personificada no próprio CNJ, que sequer considerou incluir o recorde de raça e gênero em sua análise.

Já no Ministério Público, saltam aos olhos exemplos como o da Bahia. Cerca de 76% da população é negra, mas os negros somam apenas 1,9% dos promotores de justiça.

É, portanto, inequívoca a existência de um racismo institucional no Brasil. Essa situação faz com que as chances e oportunidades para negros e negras sejam sistematicamente limitadas – o que resulta em uma sociedade de castas, como defende de Sueli Carneiro no artigo “O Dilema do anti­racismo”.

Nesse cenário, os debates acerca da implementação de políticas que tornem mais igualitário o acesso aos cargos do sistema de justiça é urgente e necessário. Nos últimos anos, importantes políticas vêm sendo implementadas para reduzir essa ausência de representatividade plurirracial.

O Ministério Público da Bahia reserva aos negros, desde setembro de 2014, 30% das vagas para a carreira de promotor de justiça. O Conselho Nacional da Justiça, em junho deste ano, aprovou a reserva mínima de 20% das vagas dos concursos públicos para a magistratura. O mesmo caminho é seguido por Defensorias Públicas de todo o País, como a de São Paulo, que recentemente aprovou a implementação de cotas étnicos­ raciais para negros e indígenas aos cargos de defensores e servidores.

Dados não faltam para mostrar a necessidade de abrir espaços para novas iniciativas que rompam com a desigualdade racial nas carreiras do sistema de justiça. Após dez anos de ações afirmativas no âmbito das políticas educacionais, pessoas com perfis sociais e étnico­raciais diversos estão concluindo o ensino superior – o que é essencial para que essas mudanças também alcancem as carreiras sociais mais representativas.

O Brasil e outros Estados-­membros das Nações Unidas, reunidos em Santiago no ano de 2000 e na III Conferência Mundial de Combate ao Racismo, Discriminação Racial, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata realizada na África do Sul em 2001, dentro da Declaração e do Plano de Ação saídos daquelas conferências, comprometeram­se de forma gradativa a adotar políticas que pudessem criar um equilíbrio social, econômico e de desenvolvimento de populações historicamente vulneráveis, invisibilizadas há séculos.

Realizar políticas visando converter esse cenário desigual nada mais é que o cumprimento do projeto democrático de assegurar a diversidade e a pluralidade social, já reconhecida pelo STF na ADPF 186 e refletida no texto constitucional e na Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial da ONU, que prevê expressamente as políticas de cotas como instrumento fundamental no combate e eliminação do racismo.

Considerando a função essencial do Ministério Público para o Estado Democrático de Direito, a instituição deve reconhecer seu papel na redução das desigualdades sociais e promover uma mudança das condições estruturais de sua própria composição como reflexo dessa redução.

Nesta terça-feira (18/08), o Conselho Nacional do Ministério Público, terá a oportunidade de seguir o exemplo de outras entidades do sistema de justiça e implementar políticas de ação afirmativa para o ingresso na carreira em todo o Brasil. Essa seria uma acertada, se não óbvia e tardia, adaptação da estrutura da instituição à realidade brasileira e aos ditames constitucionais que buscam corrigir toda e qualquer desigualdade ­ principalmente a mais vergonhosa de toda a história brasileira, fruto da escravidão.

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