A falta de transparência e os déficits democráticos do Judiciário são pontos destacados por Flavio Siqueira Júnior e Sheila Santana de Carvalho no debate sobre a democratização do sistema de justiça. No artigo publicado na 6ª edição do Caderno Direitos Humanos, Justiça e Participação Social, os autores questionam o desenho institucional do Poder Judiciário e propõem as deficiências dos sistema de justiça brasileiro sejam vistos como um feixe do debate sobre a democratização do sistema de justiça.
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Punitivismo e controle ideológico da magistratura
Flavio Siqueira Junior e Sheila Santana de Carvalho – Conectas Direitos Humanos
Entre os diversos temas que circundam o debate sobre a democratização do sistema de justiça, destaca-se o questionamento do desenho institucional que estrutura o Poder Judiciário. Além da forma e critérios de ingresso, formação e ascensão na carreira da magistratura, a problematização do desenho institucional das cortes pode trazer respostas de como uma ideologia punitivista se mantém tão agarrada às barras das togas, consubstanciando-se num elemento central da atual política de encarceramento em massa.
Uma das barreiras para se identificar tais problemáticas é a falta de transparência do Judiciário, uma das últimas instituições a se abrir para a participação social no contexto da Constituição de 1988[1]. Porém, é inevitável que casos que escancaram os déficits democráticos do Judiciário emerjam para o conhecimento público e estimulem o debate.
O último caso que ganhou notoriedade foi o do juiz Roberto Luiz Corcioli Filho, afastado da vara criminal à qual fora designado por suas decisões privilegiarem a garantia constitucional de liberdade ao invés de estarem alinhadas à cultura encarceradora do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Rompendo o silêncio típico da carreira, o magistrado acessou o Conselho Nacional de Justiça[2] para que este se manifestasse sobre seu caso e sobre a política de designações de juízes auxiliares no estado, uma vez que o presidente da corte paulista pode escolher e movimentar livremente juízes em varas sensíveis, como as que tratam de matéria criminal e tributária.
A questão está agora no Supremo Tribunal Federal[3], depois do CNJ ter acatado na totalidade o pleito do magistrado e determinado ao tribunal paulista que adotasse critérios objetivos, impessoais e predeterminados de designação de juízes. E ainda há outros casos que demonstram o desejo da cúpula dos tribunais em decidir e movimentar com discricionariedade máxima os juízes em áreas estratégicas[4].
Tais elementos evidenciam que a maneira de um tribunal estruturar-se pode influenciar na própria prestação jurisdicional e consequente resposta do Estado às questões sociais. O juiz que desagradar a cúpula dos tribunais poderá ser prontamente afastado de suas funções, submetendo aqueles que desejam trabalhar em áreas específicas a um controle ideológico de suas decisões.
Em matéria criminal, é flagrante a interferência na independência funcional de juízes que buscam romper posicionamentos alinhados ao chamado direito penal do inimigo[5] e a sociedade deve estar atenta e compreender a gravidade da questão, na medida em que a independência judicial é sua própria garantia de exercício de direitos. Ainda que haja um déficit representativo e participativo de controle externo do Judiciário, o déficit democrático interno também deve ser visto como um feixe do debate sobre a democratização do sistema de justiça.
Vale notar que o problema não é exclusivo do contexto brasileiro. No Paraguai, por exemplo, um juiz foi destituído após absolver 14 pessoas em um processo criminal[6]; em Honduras, quatro magistrados da Suprema Corte de Justiça foram destituídos por dar provimento a um recurso contra a Lei de Depuração da Polícia[7]; no Uruguai, uma juíza foi afastada de seus casos depois de ter condenado um ex-presidente do país por sua participação no golpe de Estado de 1973[8].
Na atual conjuntura, aquele que for visto como uma ameaça a essa cultura encontrará muita resistência daqueles que se utilizam do desenho institucional do Judiciário para exercer seu poder de influência. Por isso, quem espera do Judiciário uma atuação independente e alinhada com os princípios constitucionais e internacionais de direitos humanos deve ficar atento e incidir no debate sobre sua estrutura e organização. Essa pode ser mais uma das saídas possíveis para se varrer o pó do punitivismo seletivo que insiste em se manter dentro dos tribunais e que criminaliza aqueles que sofrem com a injustiça social.
[1] Análise de José Geraldo de Sousa Junior em entrevista ao Instituto Humanitas Unisinos. 03/13/2013. Disponível em:http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/526174-a-constituicao-e-a-construcao-de-direitos-entrevista-especial-com-jose-geraldo-de-sousa-junior.
[2] Pedido de Providências nº 0001527-26.2014.2.00.0000. Con. Rel. Gisela Gondin Ramos.
[3]Mandado de Segurança (MS) 33.078/SP, Min. Rel. Rosa Weber, impetrado pelo TJSP contra a decisão do CNJ.
[4] Caso da criação dos Departamentos Estaduais de Execução Penal pelo TJSP – através da Lei Estadual n.º 1.208/2013, – que éobjeto de Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5070 por parte da Procuradoria Geral da República.
[5] Conceito de Günther Jakobs.
[6]Caso levado à Relatoria de Independência Judicial da ONU. AL – PRY 5/2012. A/HRC/23-51Disponível em: http://www.ohchr.org/Documents/HRBodies/SP/A-HRC-23-51_EFS.pdf
[7]Caso levado à Relatoria de Independência Judicial da ONU. UA – HND 13/20012. Disponível em: http://www.ohchr.org/Documents/HRBodies/SP/A-HRC-23-51_EFS.pdf
[8] Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Disponível em: https://www.oas.org/es/cidh/defensores/docs/pdf/Operadores-de-Justicia-2013.pdf