O artigo publicado pelo Nexo Jornal, explora o pedido de prisão preventiva formulado pelo Ministério Público do Estado de São Paulo contra o ex-presidente Lula. Nele, os autores sinalizam impropriedades nos fundamentos do pedido e constatam o caráter das supostas condutas pelas quais Lula foi denunciado: manifestações da liberdade de expressão.
Ainda, destacam o imenso significado político que o evento representa, ilustrando a urgência de que a sociedade brasileira têm de elaborar mecanismos de controle social sobre os órgãos do Sistema de Justiça.
“A petição do MP mostra também o quanto o Poder Judiciário e os outros órgãos do Sistema de Justiça estão pouco acostumados a se perceberem como membros do Estado e, como tais, a terem suas decisões e ações sujeitas à crítica e ao crivo do debate público.” Confira:
Fonte: Nexo Jornal
Por Ester Gammardella Rizzi* e Tiago Tranjan**
A liberdade de expressão é um valor caro à ordem democrática. Na verdade, trata-se de um dos fundamentos mais importantes da noção de democracia: o governo de todos só pode estabelecer-se à medida que todos possam formular e defender, de maneira ampla e efetiva, suas ideias a respeito de temas públicos.
Nesta semana que se passou, o Ministério Público do Estado de São Paulo formulou pedido de prisão preventiva contra um ex-presidente da República. Lula mora no Brasil, e não há indícios de que queira sair daqui. Possui residência fixa e notoriedade suficiente para que não seja fácil ou provável que tente escapar de uma eventual “aplicação da lei penal”. Cabe então perguntar: Qual é o fundamento alegado pelo Ministério Público para esse pedido?
O artigo 312 do Código de Processo Penal estabelece os requisitos que devem ser observados para que uma prisão preventiva possa ser requerida e decretada. Em primeiro lugar, é necessário que haja prova da existência do crime e indício suficiente de sua autoria. Mas isso só não basta. A prisão preventiva só se justifica, nos termos do artigo, “como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal”.
Deixemos de lado a prova da existência do crime e os indícios de sua autoria, que o MP alega possuir. Embora questionável, não trataremos desse assunto, por ser matéria fática de difícil análise. Interessa-nos examinar mais de perto a seção VIII da petição do MP, intitulada “Dos fundamentos fático-jurídicos do pedido de prisão preventiva do denunciado Luiz Inácio Lula da Silva”. É aqui que se revela um problema grave, não apenas dessa peça, mas da maneira como o sistema de administração da Justiça – ou ao menos parte expressiva dele – compreende seu papel institucional.
Segundo o MP, se mantido em liberdade, Lula poderia causar transtornos e ameaças à ordem pública. Citamos alguns trechos:
“109) Entendem os promotores de justiça subscritores que o denunciado LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA atentou contra a ordem pública ao desrespeitar as instituições que compõem o Sistema de Justiça, especialmente a partir do momento em que as investigações do Ministério Público do Estado de São Paulo e da Operação Lava Jato (MPF – Curitiba) se voltaram contra ele.” (§109, p. 56)
“110) Do alto de sua condição de ex autoridade máxima do país, o denunciado LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA jamais poderia inflamar a população a se voltar contra investigações criminais a cargo do Ministério Público, da Polícia, tampouco contra decisões do Poder Judiciário.” (§110, p. 56)
E como a petição descreve os atentados que Lula estaria cometendo contra a ordem pública? Novamente citamos, destacando algumas passagens e expressões relevantes:
“E foi isso que o denunciado LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA fez, valendo-se de toda sua ‘força político-partidária’, ao convocar entrevista coletiva após ser conduzido coercitivamente para ser ouvido em etapa da Operação Lava Jato.” (§111, p. 56)
“Tais condutas do denunciado Luiz Inácio Lula da Silva puderam ser facilmente comprovadas pelo acompanhamento periódico da imprensa livre a respeito de suas manifestações e opiniões quando as investigações começaram a se voltar contra ele.”(§112, p. 56)
“ (…) o denunciado Luiz Inácio Lula da Silva sempre buscou manobras para evitar que a investigação criminal do Ministério Público não (SIC) avançasse. Foi assim que se valeu do apoio de seus parceiros políticos, como o nobre Deputado Federal Luiz Paulo Teixeira Ferreira que inicialmente formulou pedido na Corregedoria Geral do Ministério Público contra um dos subscritores desta investigação (…). ” (§116 a 118, p. 57)
“ (…) A medida foi comemorada pelo ex Presidente da República, ora denunciado e seus apoiadores, conforme fotografia abaixo publicada na imprensa escrita.” (§121, p. 59)
“Após ser conduzido coercitivamente para ser ouvido pela Polícia Federal, agendou ele uma entrevista coletiva na tarde de 04 de março de 2016, ocasião em que acabou declarado que (…).” (§125, p. 60)
Como é fácil constatar, as condutas de Lula, supostamente ofensivas às instituições do Sistema de Justiça, são na verdade manifestações da liberdade de expressão. Vale a pena elencar essas condutas. Uma entrevista coletiva em que critica as instituições do Sistema de Justiça por terem-no conduzido coercitivamente, sem que aparentemente estivessem presentes os pressupostos para tal. Um pedido devidamente formulado junto à Corregedoria Geral do Mistério Público. Uma comemoração de uma decisão favorável obtida junto ao Conselho Nacional do Ministério Público. Uma conversa telefônica, protegida por sigilo telefônico, que fora filmada não intencionalmente pela Deputada Jandira Feghali, em que Lula maldiz (em termos de baixo calão) o processo investigatório no qual havia sido conduzido coercitivamente.
Segundo o Ministério Público, em todas essas manifestações Lula estaria a “inflamar a população a se voltar contra investigações criminais a cargo do Ministério Público, da Polícia, (…) contra decisões do Poder Judiciário” (§110, p. 56). E isso ele não poderia fazer, por configurar atentado à ordem pública. “Ataques às instituições” (§122, p. 59); “conduta que fragiliza o Sistema de Justiça e põe em xeque o Estado Democrático de Direito” (§124, p. 60); “[condutas] deliberada e intencionalmente ofensivas às instituições do Sistema de Justiça e que sustentam o Estado Democrático de Direito que se ajustam à violação da garantia da ordem pública (§130, p. 61)” são expressões utilizadas pelos promotores para fundamentar o pedido de prisão preventiva.
O outro argumento do MP para a prisão preventiva, além da ameaça à ordem pública, diz respeito à conveniência da instrução penal. Nesse sentido é que o MP aponta – ao menos é o que se pode depreender da leitura dos parágrafos 144 a 149 da petição – para o risco que representa sua relação com a presidente Dilma Rousseff, e sua possível influência política em relação ao comportamento da Polícia Federal (PF).
Em todos esses supostos fundamentos, alegados pelo Ministério Público, verificam-se pelo menos duas impropriedades, bastante significativas. A primeira traduz menosprezo pela liberdade de expressão e, em geral, pelo direito que tem qualquer cidadão de se insurgir, pela palavra, contra o que considere exercício arbitrário do poder estatal. A segunda traduz uma compreensão mais do que estreita da atividade política e sua relação com o Poder Judiciário.
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A liberdade de expressão é um valor caro à ordem democrática. Na verdade, trata-se de um dos fundamentos mais importantes da noção de democracia: o governo de todos só pode estabelecer-se à medida que todos possam formular e defender, de maneira ampla e efetiva, suas ideias a respeito de temas públicos.
Por esse motivo, a proteção da liberdade de expressão foi reconhecida como essencial desde pelo menos o art. 11 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789. Sua principal função está em garantir que os cidadãos se manifestem e critiquem os poderes instituídos.
Se é verdade que nenhum direito é absoluto e que a própria liberdade de expressão encontra limites e restrições quando confrontada com, por exemplo, a necessidade de proteção às crianças e adolescentes (classificação indicativa) ou com o valor da tolerância (proibição de injúria racial), a crítica de atos dos poderes do Estado parece ser a esfera em que ela precisa ter maior amplitude. Criticar o poder e manifestar-se sobre temas públicos é, ao mesmo tempo, sua origem e um de seus âmbitos de aplicação mais importantes. Protegida no art. 5º, inciso IX da Constituição, ela é complementada pelo §2º do artigo 220, que estabelece ser “vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística”. O discurso político – e, portanto, de crítica política ao funcionamento das instituições – reveste-se assim de uma camada extra de proteção constitucional.
Ora, segundo os promotores, a conduta de Lula que teria atentado contra a ordem pública foi ter convocado uma coletiva de imprensa no dia 04 de março, após ter sido conduzido coercitivamente pela PF, para criticar o procedimento e a forma como estava sofrendo a investigação pelas instituições do Sistema de Justiça. Seu direito de falar, de criticar publicamente as instituições estatais – liberdade garantida constitucionalmente a qualquer pessoa e cuja realização é pressuposto da própria democracia – não poderia nunca figurar como fundamento de um pedido de prisão preventiva. Também não poderia assumir esse papel a simples comemoração de uma decisão favorável, ou mesmo a manifestação privada de desprezo pelo processo, ainda que grosseira.
Menos ainda poderia servir como fundamento de pedido de prisão preventiva uma petição regularmente feita junto ao Conselho Nacional do Ministério Público. Trata-se de possibilidade de insurgência não apenas tolerada, como devidamente prevista pelo próprio poder estatal. A posição do MP causa aqui tamanha estranheza que os próprios promotores sentem-se na obrigação de dar uma explicação, e gastam o parágrafo 119 de sua petição para esclarecer que o problema não é o “legítimo direito de petição”, mas sim o fato de esse se exercer por meio de “interpostas pessoas”, no caso o deputado federal e advogado Paulo Teixeira. O argumento é tão descabido que não mereceria comentário, não estivesse presente em uma peça de tamanha repercussão: tanto quanto o direito de peticionar, a possibilidade de fazê-lo por meio de representantes, particularmente um advogado, é regularmente prevista em nosso ordenamento. No trato com os órgãos de administração da justiça, é antes a regra do que a exceção.
Como se vê, as dificuldades dos três promotores paulistas em compreender o instituto da liberdade de expressão e o direito ao contraditório e à ampla defesa são grandes. Cabe ainda falar da outra grande impropriedade em que incorrem. Ela diz respeito a uma compreensão deficiente do que seja o papel da política.
O ex-presidente Lula é figura política da máxima expressão em nosso país. Seu destino público – particularmente sua participação em processo penal e eventual prisão, bem como a perda da possibilidade de se candidatar em 2018 – é revestido de imenso significado político. E embora a lei seja igual para todos, a eventual prisão de uma figura como a de Lula não tem o mesmo significado político da prisão de outros cidadãos. Todas as imputações feitas a Lula, no sentido de caracterizar suas ações como ameaça à “ordem pública”, não passam da constatação óbvia desse fato. Todos os atos desse processo previsivelmente gerarão comoção pública, controvérsias e críticas acerbas; muitas pessoas se mobilizarão em seu favor; todo um espectro do campo político, incluindo a atual presidente, irá organizar uma estratégia de reação. É inevitável que assim seja; e é positivo que assim seja.
Até onde se sabe, Lula não pediu a correligionários que incendiassem a sede do MP. Não pediu à presidente Dilma Rousseff que aja ilegalmente para impedir investigações, ou que destrua provas. Esses sim seriam fatos graves, a demandar resposta enfática do sistema legal, como a prisão preventiva. Os três promotores paulistas, porém, parecem supor que a simples repercussão política do caso, absolutamente inevitável, é uma afronta e uma ameaça à administração da justiça; e que qualquer crítica ou resposta que venham a receber, com inevitáveis repercussões no plano político, é um desrespeito “à ordem pública”.
Nesse sentido, a petição do MP mostra também o quanto o Poder Judiciário e os outros órgãos do Sistema de Justiça estão pouco acostumados a se perceberem como membros do Estado e, como tais, a terem suas decisões e ações sujeitas à crítica e ao crivo do debate público. O pedido de prisão preventiva de Lula é a prova de que a sociedade brasileira precisa com urgência elaborar mecanismos de controle social sobre os órgãos do Sistema de Justiça. Ouvidoria Pública externa, tal como implementada na Defensoria Pública de São Paulo, e em debate no Supremo Tribunal Federal na ADI 4608, pode ser um entre vários caminhos.
*Ester Gammardella Rizzi é advogada e professora da Faculdade Cásper Líbero e da Universidade Presbiteriana Mackenzie.
**Tiago Tranjan é professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de São Paulo.