Em parceria com a Fundação Friedrich Ebert (FES), a Articulação Justiça e Direitos Humanos (JusDH) promoveu, no último dia 10 de agosto, em São Paulo, a oficina “Supremo Tribunal Federal (STF): reformar para democratizar”.
A atividade contou com a participação da ex-ministra da Justiça alemã Herta Däubler-Gmelin (que exerceu o cargo entre 1998 e 2002) e teve como objetivo contribuir para o debate público sobre a natureza e composição do Supremo Tribunal Federal (STF) brasileiro a partir de reflexões das e dos participantes – integrantes de entidades da sociedade civil que visam a democratização da Justiça – e da análise de experiências de processos de outros países, como a Alemanha.
Mecanismos de garantia de transparência, regulamentação, estabelecimento de critérios e de um debate público sobre as substituições de Ministros/as da mais alta Corte do país, além de medidas que tornem o STF uma corte efetiva e exclusivamente constitucional, integraram os debates centrais da oficina.
Após a apresentação dos objetivos e entidades da JusDH, a ex-ministra, ativista de direitos humanos e ex vice-presidente do Partido Social Democrata, apresentou características do Sistema de Justiça alemão, ressaltando as diferenças em relação ao brasileiro. Lá, por exemplo, os juízos estaduais se limitam à primeira instância, enquanto a Justiça Federal representa apenas a segunda – ao contrário do Brasil, na qual justiça federal e estadual se estruturam paralelamente com primeira e segunda instância próprias.
Outra distinção observada é a amplitude do rol de competências, inclusive originárias, da Corte Constitucional no Brasil. “Algo que me causa surpresa nessa viagem a São Paulo são as amplas possibilidades de o próprio STF definir sua competência”, apontou.
Critérios
Däubler-Gmelin elencou os critérios para escolha e nomeação de ministros e funcionamento da Corte Constitucional alemã, que também diferem da brasileira. Primeiro, o processo está regulamentado pela Constituição alemã e pela Lei do Supremo Tribunal. Depois, porque associações têm a possibilidade de indicar nomes para a composição da Corte. No processo de escolha e nomeação, todos os nomes apresentados são pré-classificados pelo Ministro da Justiça. Os presidentes das duas câmaras do Supremo Tribunal Constitucional emitem pareceres, e depois os nomes passam para um comitê de seleção do Parlamento Federal do qual participam todos os agrupamentos políticos. “Não é possível que um partido ou um grupo de partido consiga manipular a maioria do parlamento”, afirmou, chamando atenção para o fato de o processo de votação no parlamento exigir maioria qualificada.
A ocupação dos cargos de ministro da corte têm 12 anos de duração cada e os (as) juízes (as) não podem ser reconduzidos. “Quando terminam o seu mandato, recebem uma boa aposentadoria, o que garante que não precisem virar advogados de empresas”, explicou Däubler-Gmelin. A idade mínima para candidatura ao cargo deve ser de 40 anos e os (as) candidatos (as) devem ser juristas com aprovação em dois exames de Estado com notas de excelência.
“Todo mundo vai achar engraçado”
Todas as definições do Tribunal Federal Constitucional têm força de lei. Além disso, o Tribunal Constitucional sempre julga em colegiado. “O presidente não tem o voto de minerva. Se conto isso na Alemanha, todo mundo vai achar engraçado. Cada câmara tem 8 membros, então não é simples formar uma maioria. Precisamos de no mínimo 5×3 para um pedido ser aceito. Votos vencidos são publicados, ainda que vencidos”, contou.
As diferenças entre os mecanismos de cada um dos tribunais superiores talvez possam ser aferidas pelo grau de satisfação de suas populações: para 80% dos alemães, os magistrados do Tribunal Constitucional são independentes e imparciais e atuam para defender a população. Já o índice de confiança no Judiciário do Brasil em 2016 foi de 29%,conforme pesquisa da FGV lembrada pelo integrante da Conectas presente à atividade, Rafael Custódio.
Élida Lauris, jurista e pesquisadora brasileira, resgatou o histórico do que considera duas fases de amadurecimento político do STF: a primeira, marcada pela herança da ditadura militar e a segunda marcada pela renovação da composição da Corte. Com a posse de Lula, em 2003, abriu-se a possibilidade de alteração da composição, mas na avaliação de Lauris, apesar das expectativas, essa mudança não trouxe impacto significativo na formação de uma cultura democrática de interpretação e aplicação dos direitos humanos.
A ausência de mecanismos de controle popular nas nomeações do Judiciário (bandeira central da JusDH), os privilégios dos magistrados, sua relação por vezes espúria com empresas e a ainda incipiente cultura de direitos humanos no meio jurídico brasileiro também foram questões apontadas por participantes integrantes das organizações que compõem a JusDH na apresentação à ex-ministra. Nesse contexto, foram apresentados casos enfrentados atualmente no país, como a possibilidade de aprovação da ADI que retira direitos territoriais dos quilombolas e o retrocesso em relação ao princípio da presunção de inocência no STF.
Däubler-Gmelin, por sua vez, ressaltou que a participação do Poder Judiciário na repressão política ou em graves violações de direitos humanos merece ser desvelada, e chamou de “escândalo” a utilização do mecanismo de delação premiada nos processos penais recentes com impacto na política nacional. “Se tudo o que eu ouvi está acontecendo é um escândalo. É questionável a livre espontânea vontade de alguém que está preso. A delação tem que acontecer antes do inicio do processo judicial”, asseverou.
Eventos e pesquisa
“A atividade com a ex-ministra foi bastante importante para o processo de acúmulo da JusDH sobre a construção de propostas efetivas de mudanças no STF no Brasil, porque permitiu uma troca de olhares e experiências sobre o modelo alemão e as diferenças em relação ao modelo brasileiro”, avalia Luciana Pivato, integrante da Terra de Direitos, organização que compõe a JusDH.
A rede promove, neste semestre, uma série de eventos pelo país para debater a natureza de um Judiciário considerado ideal para a garantia da promoção da igualdade e dos direitos humanos no Brasil. Estão previstas atividades no Ceará (em 21 e 22 de setembro) e em Pernambuco (em 11 de setembro). Além disso, a rede realiza uma pesquisa sobre o “STF que temos e o STF que queremos”, a ser lançada no ano que vem.