Nova lei atinge crimes das Forças Armadas em Operações de Garantia da Lei e da Ordem
Fonte: JOTA
Por Mariana Muniz
Antes julgados pela Justiça Comum, os crimes dolosos contra a vida praticados contra civis por militares quando em atividade operacional passarão a ter outro destino: a Justiça Militar da União.
A transferência dos julgamentos, que desde 1996 eram realizados pelo tribunal do júri da Justiça comum, é resultado da sanção, pelo presidente Michel Temer, do projeto de lei 44/2006. A alteração vale para crimes praticados a partir do dia 16.
A medida estabelece o foro militar para membros das Forças Armadas – Exército, Marinha e Aeronáutica – durante operações de Garantia da Lei e da Ordem, como as que estão sendo realizadas em comunidades do Rio de Janeiro. A lei passa a vigorar imediatamente, e não tem efeitos retroativos.
Segurança jurídica
O foro militar para o julgamento de eventuais crimes praticados por membros das Forças Armadas contra civis durante operações excepcionais significa que os militares serão julgados, em primeira instância, por juízes de direito que integram a Justiça Militar da União.
O principal argumento dos defensores da medida é o da segurança jurídica. Em entrevista ao JOTA, o vice-presidente do Superior Tribunal Militar (STM) afirmou que a Justiça Militar tem isenção e independência para julgar os casos.
“A Justiça Militar, além de ser mais rápida, pois é especializada, tende a ser muito mais rigorosa em seus julgamentos. Um militar julgado na Justiça Militar geralmente tem punições mais severas do que quando levado ao Tribunal do Júri”, sustentou o general Lúcio Mário de Barros Góes, rebatendo as críticas de que haverá corporativismo nos julgamentos.
Segundo a lei, crimes contra a vida cometidos por militares contra civis quando o militar não estiver em serviço continuarão sendo julgados pelos tribunais do júri da Justiça comum.
“O principal efeito para o militar envolvido em operação é a segurança jurídica. O grande pleito dos comandantes das Forças [Armadas] era no sentido de que os homens empregados em operações de garantia da lei e da ordem fossem empregados com maior tranquilidade”, disse o vice-presidente do STM.
Para ele, operações como as que ocorrem atualmente no Rio de Janeiro representam “um risco muito grande” para os militares, já que ocorrem dentro de uma área urbana, de pouca visibilidade. “Não é o emprego usual da Força Armada. Ela está ali numa missão excepcional, para atender a uma necessidade da sociedade. ”
Atualmente, há 19 tribunais de primeira instância da Justiça Militar da União, distribuídos em 12 Circunscrições Judiciárias Militares. O STM, na última instância, é formado por 15 ministros – dez militares e cinco civis. Por ano, confirmou ao JOTA o general-ministro, o STM julga pouco mais de 1.500 casos.
Com a sanção da lei, alguns ajustes jurídicos precisarão ser feitos dentro do tribunal superior. “O tribunal vai ter que examinar e definir o alcance da lei, até onde ela vai”, explicou o ministro civil do STM Arthur Vidigal de Oliveira. “Será preciso uniformizar a interpretação sobre o que é crime militar previsto nesta lei. ”
A lei sancionada por Temer prevê que outras situações de crime doloso contra a vida cometido por militares das Forças Armadas contra civil serão julgadas pela Justiça Militar: ações no cumprimento de atribuições que lhes forem estabelecidas pelo presidente da República ou pelo ministro da Defesa, ações que envolvam a segurança de instituição militar ou de missão militar, mesmo que não sejam de guerra e atividades de natureza militar, operação de paz ou de atribuição subsidiária.
Parcialidade
Para Rafael Custódio, que coordena a área que analisa violência institucional na organização de defesa de direitos humanos Conectas, a lei aprovada cria uma espécie de imunidade ao controle dos atos praticados pelas tropas nas comunidades pobres. “O projeto é um verdadeiro cheque em branco para cometer violações de direitos, o que é absolutamente reprovável”, diz.
A entidade de proteção aos direitos humanos garante que a lei será questionada no Supremo Tribunal Federal (STF). “A justiça militar deve ser usada somente em casos muito específicos, excepcionais, quando o ato do militar está vinculado à sua função primordial como Forças Armadas. Esse é o entendimento da Constituição”, afirma Custódio.
“A regra é que somete em casos excepcionalíssimos se legitima a Justiça Militar. O que não é o caso, já que nessas operações [as Forças Armadas] acabam atuando como polícias. E se atuam como policias as operações devem ser julgadas como as próprias polícias. Caos contrário é realmente um privilégio”, explicou.
A Justiça Militar da União não julga os policiais militares. Ao lado dos bombeiros, os policiais são julgados pela Justiça Militar estadual ou pela Justiça comum. Em 1996, a Lei Bicudo (9.299/96) definiu crimes dolosos contra a vida cometidos por policiais militares contra civis são de competência da Justiça Comum.
Fernando Prioste, assessor jurídico da organização Terra de Direitos, faz coro ao argumento de privilégio da classe militar em ser julgada somente pela Justiça Militar e questiona se as Forças Armadas não confiam na Justiça Comum.
“Essa situação toma uma grande dimensão em função do contexto atual de excessivo e equivocado uso das Forças Armadas para segurança pública interna, como na Copa do Mundo, nos Jogos Olímpicos e mais recentemente na Rocinha. Chama a atenção o fato de os sistemas judiciais militares não oferecem recursos eficazes para tratar de situações de violações de direitos humanos, o que é denunciado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos desde a década de 1990”, critica.
(In)Constitucional?
O professor de direito constitucional do UniCEUB Eduardo Mendonça explica que a Constituição prevê que cabe à lei definir o conceito de crime militar. “Acho a lei péssima. Um retrocesso, porque estabelece a competência da Justiça Militar para crimes cometidos contra civis, em tempos de paz. A tendência nos países democráticos é no sentido contrário. ”
“No entanto, não me parece que seja inconstitucional. No caso, a competência se limita aos casos em que o crime seja cometido pelo militar em serviço. Por criticável que seja, acho que está dentro da margem de confirmação reservada ao legislador”, aponta.
Mendonça observa que nem tudo o que parece ruim ao observador é inconstitucional. “A lógica deve ser justamente o contrário, que só se declare a inconstitucionalidade do que seja incompatível com algum dispositivo específico da Constituição. ”