Fonte: JOTA
Por: Luciano Pádua
A sub-representatividade de negros no universo jurídico é gigantesca. Em 2015, 54% da população brasileira se autodeclarou parda ou negra, mais do que a proporção de brancos, que é de 45,2%.
Enquanto isso, no Poder Judiciário, apenas 15% dos servidores e magistrados são pardos ou pretos, segundo censo realizado em 2013 pelo Conselho Nacional de Justiça.
Nos escritórios, essa proporção é ainda mais desigual: menos de 1% dos cargos dos mais de mil escritórios que compõem o Centro de Estudos de Sociedades de Advogados (CESA) são preenchidos por sócios, advogados ou estagiários negros, de acordo com estimativa da entidade.
No Judiciário, medidas afirmativas, como cotas para candidatos negros em concursos públicos, têm sido colocadas em prática para tentar aumentar a proporção de negros nos quadros das instituições. Para os escritórios, embora haja algum avanço nos últimos anos, as políticas afirmativas ainda são incipientes.
Essa foi uma das constatações do evento “Igual por direito: diversidade racial no meio jurídico”, realizado por meio de uma parceria envolvendo oito grandes escritórios, o Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (CEERT), o Instituto Ethos e o CESA na última terça-feira (21/11), em São Paulo.
A questão racial deixou de ser tabu nos escritórios apenas recentemente. A própria subrepresentação dos negros representa um desafio para que as políticas de equidade sejam postas em prática. Na maioria das bancas, o tema da diversidade começou pelo viés de gênero, com mulheres que se reuniram em comitês para buscar políticas que permitissem igualdade na evolução da carreira.
Frequentemente, esses grupos que tratam de diversidade dentro dos escritórios também passaram a discutir questões relacionadas à comunidade LGBT. “Há uma representatividade desses grupos dentro dos escritórios, que impulsionam a pauta”, diz Thiago Amparo, professor de Direito da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo. As dificuldades em relação às pautas raciais são maiores, segundo Amparo, porque advogados negros sequer estão presentes nos escritórios.
No mercado
Os números relativos à ocupação de cargos por pessoas negras deixam claro o quanto precisamos evoluir nesta questão. Uma pesquisa do Instituto Ethos com as 548 maiores empresas do país mostrou que apenas 4,7% dos cargos executivos são ocupados por pessoas que se declararam negras – proporção semelhante foi encontrada em vagas dos conselhos de administração e de cargos de gerência.
Cruzando os dados raciais com os de gênero, os resultados são ainda mais estarrecedores. “As mulheres negras ocupam 0,4% dos cargos nesses espaços. Dos 548 diretores com os quais fizemos análises, havia apenas duas mulheres negras”, afirma Sheila de Carvalho, coordenadora de projetos de Direitos Humanos do Instituto Ethos.
Tidos como ambientes conservadores, os escritórios – ao menos parte deles – têm buscado se aliar às boas práticas quanto à diversidade. Essa mudança não tem viés apenas moral: uma pesquisa da consultoria americana McKinsey mostrou que empresas com diversidade étnica na composição dos empregados têm 35% mais chances de obter retornos financeiros acima da média nacional de seu setor. De acordo com a pesquisa, para cada 10% de aumento na diversidade racial e étnica dos executivos seniores, o lucro antes dos juros e impostos (EBIT) aumenta 0,8%.
“Como fator competitivo, quando falamos em diversidade, costumamos trazer essa dimensão para que não fique só na questão da responsabilidade social. É fundamental fazer o que é certo, mas é importante o empresário saber que ter equidade racial aumentará os resultados”, diz o advogado Daniel Teixeira, do CEERT.
Um estudo do CEERT mostrou outra dimensão do problema. Por vezes, há oferta de candidatos negros suficientemente qualificados para as vagas na população geral, mas esse número fica subrepresentado dentro dos setores econômicos.
“Um tipo de temática que temos de abordar é a ação afirmativa. Outra temática é se, no recrutamento das pessoas bem formadas, não fazemos uma diferenciação de um negro na disputa com um branco no viés inconsciente por termos incutidas essas ideias de racismo na cabeça”, diz Roberto Quiroga, sócio do escritório Mattos Filho.
Para especialistas, o fato de muitos escritórios já terem começado a discutir diversidade pela via de gênero e, depois, pelo LGBT mostra que o tema está avançando. Thiago Amparo, da FGV, identifica dois movimentos: o aumento de estagiários negros e a liderança dos – poucos, segundo ele – advogados negros com projeção no mercado advocatício.
Alguns pontos tornam essa questão ainda mais premente: nos últimos 10 anos, com a política de cotas, dobrou o número de negros nas universidades. “Os negros fizeram uma mobilização para poder estudar e hoje querem trabalhar com dignidade. Mas é necessário que as instituições de trabalho deem um passo para tornar isso possível”, afirma Daniel Teixeira, do CEERT.
Incluir Direito
Atentos a esse cenário, alguns escritórios têm buscado formas de aumentar a participação de negros nos seus quadros. A iniciativa Incluir Direito, um projeto piloto do CESA com a Universidade Presbiteriana Mackenzie, prepara universitários negros do 3º ao 5º ano para entrevistas com grandes escritórios.
“O quadro de injustiça histórica contribui para a dificuldade de acesso da população negra a meios de qualificação que permitam acessar os nossos escritórios”, afirma Paulo Sehn, diretor do CESA e sócio do Trench, Rossi e Watanabe Advogados. A primeira turma de alunos mentorados fará as entrevistas no final do ano. A ideia é ampliar o número de universidades parceiras em 2018.
As iniciativas comuns são a criação de comitês de diversidade – cada escritório os divide à sua maneira -, recenseamentos internos para mostrar numericamente a demografia dos funcionários e campanhas para conscientização e informação. Eles também têm investido em parcerias com instituições, como o ISMART, que seleciona talentos nas escolas públicas e oferece bolsas, para selecionar estagiários.
“O nosso RH está fazendo um processo forte de capacitação sobre como atrair candidatos negros para o nosso programa de estágio e conseguir fazer que queiram ir para o escritório”, diz Roberta Leonhardt, sócia do Machado Meyer.
Para os escritórios, pela natureza conservadora de suas estruturas, o processo deve ser mais complexo do que em outros setores. Todos as bancas, porém, admitem dificuldades em produzir um ambiente de trabalho mais inclusivo.
“A gente se considerava absolutamente inclusivo. Mas vimos que, quando organizamos algumas discussões, tinha motivo e matéria para discutir”, diz Maria Elisa Verri, advogada do TozziniFreire. “A gente tem que trazer não só inclusão, mas também a retenção. Identificar que não somos basicamente inclusivos, temos que ter ações afirmativas, sim. Temos de admitir que não basta dizer que aqui é um ambiente bom e, pela meritocracia, a pessoa vai correr atrás.”
Para o Direito brasileiro, é uma boa notícia. As resistências devem acontecer, mas alguns dos maiores escritórios parecem estar dispostos a enfrentá-las. “Fizemos um censo. Me chamou a atenção que muitos brancos disseram que não responderiam às perguntas. Não adianta negar a existência dessa desigualdade”, diz Júlio César Bueno, sócio do Pinheiro Neto. “Se não tivermos um olhar de provocação interna e de fazer algo diferente, vamos cair no lema do Albert Einstein: ‘loucura é querer resultado diferente fazendo as mesmas coisas’”.