Conjur | Controle ideológico dos juízes afeta independência do Judiciário

Fonte: Consultor Jurídico (Conjur)

Por Por Andre Pires de Andrade Kehdi, Rafael Custódio e André Augusto Salvador Bezerra*

STF1A positivação do princípio da separação de poderes e o consequente estabelecimento do Judiciário como poder autônomo e independente coincidiu com a formação do Estado de Direito após as revoluções burguesas europeias e a independência dos Estados Unidos da América no século XVIII. Sob tal contexto histórico, reconheceu-se que o Estado limitado e obediente ao ordenamento jurídico requeria, dentre outras condições, o regular funcionamento da atividade jurisdicional, independente de intromissões indevidas.

Quando se fala em atividade jurisdicional desprovida de intromissões indevidas, fala-se, frequentemente, de autonomia do Judiciário perante os poderes Executivo e Legislativo. Mas não é só isso. Quando se fala em ausência de intromissão, é preciso também que se fale de autonomia de cada juiz de Direito perante a cúpula do seu próprio tribunal.

Em outros termos, é necessário que se possibilite, a cada magistrado, proferir decisões conforme sua convicção jurídica, independente de pressões externas (isto é, do Executivo e do Legislativo) e, internamente, do próprio tribunal a que se encontra vinculado (isto é, do Judiciário).

Daí o artigo 95 da Constituição Federal brasileira estabelecer como garantias da magistratura a vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de vencimentos. Trata-se de garantias que tutelam toda a sociedade, visando à realização de julgamentos independentes.

Importante lembrar que tais garantias são também objeto de proteção — e preocupação — por parte de diversos mecanismos internacionais. Nesse sentido, a Organização das Nações Unidas (ONU), através de seus relatores internacionais, bem como pelos Tribunais Internacionais de Direitos Humanos, como a Corte Interamericana de Direitos Humanos e o Tribunal Europeu de Direitos Humanos.

A despeito de tais circunstâncias, transcorridos mais de 26 anos de promulgação do texto constitucional democrático, é possível verificar que o Judiciário brasileiro não alcançou a independência necessária para a efetivação do princípio da autonomia e separação dos poderes. E, o que é mais grave, tal não efetivação dá-se por meio de ações tênues, por vezes quase imperceptíveis, mas que afetam o regular exercício da atividade jurisdicional e, por consequência, o próprio Estado de Direito.

O poder de designação atribuído aos presidentes dos tribunais configura um desses mecanismos sutis de violação. Tal poder consiste na atribuição concedida a quem ocupa as cúpulas dos tribunais escolher magistrados para o exercício da função jurisdicional em determinados locais de trabalho, podendo retirá-los e substituí-los por outros membros da carreira, a qualquer tempo.

Trata-se de exceção à aludida inamovibilidade, garantia que impossibilita a retirada de magistrados por atos internos dos tribunais ou por ações dos demais poderes. E por se cuidar de exceção, as designações devem ocorrer excepcionalmente: somente para possibilitar a continuidade do serviço em locais de trabalho ocupados por magistrados titulares em gozo de férias, licenças, promoção e afastamento.

Sucede que esse caráter excepcional das designações não é observado. O caso da Comarca Capital de São Paulo é, nesse sentido, paradigmático.

Atualmente, mais de 40% dos juízes auxiliares da capital (sujeitos a designações) não cobrem a ausência de magistrados titulares. Na verdade, estes juízes auxiliares encontram-se ocupando lugares de trabalho de forma fixa, como se titulares fossem, não estando, porém, garantidos pela inamovibilidade. Em princípio, basta a vontade do presidente do tribunal para serem retirados do lugar de trabalho.

Importante notar que muitos desses locais de jurisdição são estratégicos. Por exemplo, na Comarca da Capital de São Paulo, todas as prisões em flagrante são analisadas pelos Juízes do Departamento de Inquérito Policial (DIPO). Todavia, o DIPO não possui magistrados titulares; todos se encontram sujeitos a designações.

O que ocorre no DIPO não é caso isolado. Repete-se em tantas outras varas de São Paulo, ocupadas, senão exclusivamente, ao menos majoritariamente por Juízes designáveis. Isso, inclusive, em postos judiciais que apreciam a validade de cobranças promovidas pelas Fazenda Pública municipal ou estadual ou ainda pelas instituições financeiras.

A partir desse quadro, pode-se perguntar: qual a garantia de alguém que é preso em suposto flagrante e do contribuinte ou consumidor que contende com o Poder Público ou com um banco que a sua demanda será realmente apreciada por um juiz isento de pressões indevidas?

A resposta para essa questão é negativa. Não há qualquer garantia, por mais bem intencionado que seja um presidente do tribunal e por mais probo que seja o magistrado designado. O cidadão — jurisdicionado jamais saberá se o Juiz que está em local como os acima citados decidiu com base na sua própria convicção ou sob algum temor. Essa gritante falha estrutural permite que a imaginação do jurisdicionado vá longe — e, com isso, também para longe a credibilidade de julgamentos.

O mais grave é que aludidos postos de trabalho formados por magistrados designáveis têm se ampliado nos últimos anos. É o caso da criação das chamadas “Super VEC (Vara de Execução Criminal)”, aprovada por lei em 2013, que implementou departamentos de execução criminal pelo Estado de São Paulo, formados apenas por juízes nomeados pela cúpula do Tribunal de Justiça.

Em outras unidades da federação, a situação, de certa forma, repete-se. No Rio de Janeiro, por exemplo, tem-se o caso do Juizado do Torcedor, dotado de ampla competência para julgar causas relativas ao Estatuto do Torcedor; na Bahia, a maneira de violar a inamovibilidade é diversa: a cúpula do Tribunal de Justiça não realiza concurso de promoção de Juízes Substitutos, impedindo que uma ampla gama de magistrados torne-se titular e, portanto, dotado de plena inamovibilidade (e autonomia).

Pelo fato de violar garantias de independência do Judiciário, esse poder de designação tem sido questionado no Conselho Nacional de Justiça e no Supremo Tribunal Federal. Recentemente, o CNJ determinou ao Tribunal de Justiça de São Paulo a edição de norma que estipulasse critérios impessoais e objetivos para as designações; o mesmo órgão ainda determinou ao Tribunal de Justiça da Bahia a realização de concurso de promoção de juízes substitutos.

As determinações dirigidas a São Paulo e a Bahia encontram-se suspensas por liminares proferidas pelo ministro Lewandowski do STF; encontra-se também com a mesma corte a análise da constitucionalidade da lei que criou as “Super Vec” em São Paulo, tendo como relator o ministro Dias Toffoli.

O controle ideológico dos juízes existe e é real. Pior que negá-lo é não agir diante das evidências. Cabe, nesse quadro, ao STF impor-se como guardião da independência do Poder Judiciário, em favor do Estado Democrático de Direito projetado constitucionalmente.

*Andre Pires de Andrade Kehdi é presidente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM).

Rafael Custódio é coordenador do programa de Justiça da Conectas Direitos Humanos.

André Augusto Salvador Bezerra é presidente do Conselho Executivo da Associação Juízes para a Democracia (AJD).

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