Nos ambientes do sistema de justiça, nos fóruns, nas salas de audiência, gire o pescoço e veja quantos negros estão presentes. Quantos cumprem o papel de juiz? Quantos são promotores? Quantos são defensores? E quantos estão sentados no banco dos réus? Esse movimento crítico do olhar, apelidado pelos pesquisadores do racismo de “teste do pescoço”, tende a demonstrar o que estamos condicionados a ignorar diariamente: a ausência de representação e diversidade em espaços institucionais que fundamentam sua existência em princípios e normas constitucionais.
Vale a pena recordar: em 1988, cem anos depois do fim da escravidão, a Constituição elevou a igualdade e a justiça como valores supremos do Estado Democrático de Direito brasileiro. Ainda assim, num País de maioria negra, fotos da realidade contemporânea continuam registrando a grave desigualdade e o chocante racismo em todos os espaços da vida pública.
O censo do Poder Judiciário, publicado pelo CNJ em 2014, escancarou essa ferida da desigualdade racial no sistema de justiça. O levantamento apontou o que já é nítido: 82,8% dos juízes são brancos. Apenas 1,4 % se autodeclaram pretos e 14,2%, pardos. Vale salientar que a desigualdade racial ainda se soma à profunda desigualdade de gênero – personificada no próprio CNJ, que sequer considerou incluir o recorde de raça e gênero em sua análise.
Já no Ministério Público, saltam aos olhos exemplos como o da Bahia. Cerca de 76% da população é negra, mas os negros somam apenas 1,9% dos promotores de justiça.
É, portanto, inequívoca a existência de um racismo institucional no Brasil. Essa situação faz com que as chances e oportunidades para negros e negras sejam sistematicamente limitadas – o que resulta em uma sociedade de castas, como defende de Sueli Carneiro no artigo “O Dilema do antiracismo”.
Nesse cenário, os debates acerca da implementação de políticas que tornem mais igualitário o acesso aos cargos do sistema de justiça é urgente e necessário. Nos últimos anos, importantes políticas vêm sendo implementadas para reduzir essa ausência de representatividade plurirracial.
O Ministério Público da Bahia reserva aos negros, desde setembro de 2014, 30% das vagas para a carreira de promotor de justiça. O Conselho Nacional da Justiça, em junho deste ano, aprovou a reserva mínima de 20% das vagas dos concursos públicos para a magistratura. O mesmo caminho é seguido por Defensorias Públicas de todo o País, como a de São Paulo, que recentemente aprovou a implementação de cotas étnicos raciais para negros e indígenas aos cargos de defensores e servidores.
Dados não faltam para mostrar a necessidade de abrir espaços para novas iniciativas que rompam com a desigualdade racial nas carreiras do sistema de justiça. Após dez anos de ações afirmativas no âmbito das políticas educacionais, pessoas com perfis sociais e étnicoraciais diversos estão concluindo o ensino superior – o que é essencial para que essas mudanças também alcancem as carreiras sociais mais representativas.
O Brasil e outros Estados-membros das Nações Unidas, reunidos em Santiago no ano de 2000 e na III Conferência Mundial de Combate ao Racismo, Discriminação Racial, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata realizada na África do Sul em 2001, dentro da Declaração e do Plano de Ação saídos daquelas conferências, comprometeramse de forma gradativa a adotar políticas que pudessem criar um equilíbrio social, econômico e de desenvolvimento de populações historicamente vulneráveis, invisibilizadas há séculos.
Realizar políticas visando converter esse cenário desigual nada mais é que o cumprimento do projeto democrático de assegurar a diversidade e a pluralidade social, já reconhecida pelo STF na ADPF 186 e refletida no texto constitucional e na Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial da ONU, que prevê expressamente as políticas de cotas como instrumento fundamental no combate e eliminação do racismo.
Considerando a função essencial do Ministério Público para o Estado Democrático de Direito, a instituição deve reconhecer seu papel na redução das desigualdades sociais e promover uma mudança das condições estruturais de sua própria composição como reflexo dessa redução.
Nesta terça-feira (18/08), o Conselho Nacional do Ministério Público, terá a oportunidade de seguir o exemplo de outras entidades do sistema de justiça e implementar políticas de ação afirmativa para o ingresso na carreira em todo o Brasil. Essa seria uma acertada, se não óbvia e tardia, adaptação da estrutura da instituição à realidade brasileira e aos ditames constitucionais que buscam corrigir toda e qualquer desigualdade principalmente a mais vergonhosa de toda a história brasileira, fruto da escravidão.