Após 15 anos de processo, Redes Record e Mulher são condenadas a dar direito de resposta para religiões de matriz africana por exibir programas de cunho racista e preconceituoso
Por: josé Odeveza*
Depois de mais de 15 anos de processo, a TV Record e a Rede Mulher começaram, na última terça-feira (09), a transmitir o direito de resposta conquistado por religiões de matriz africana. O espaço reservado para tratar de questões de religião de matriz africana é fruto de decisão vitoriosa na ação que questionava os conteúdos preconceituosos contra as religiões afro-brasileiras exibidos da programação das duas redes.
A ação pública instaurada em 2004 foi proposta do Ministério Público Federal (MPF) e organizações da sociedade civil. Na ação são citados trechos do programa cristão em que ex-adeptas de religiões afro-brasileiras são chamadas de ‘ex-mãe de encosto’ e ‘ex-bruxas’. O objeto da denúncia da ação civil pública tratava, em sua maioria, do conteúdo exibido na programação religiosa intitulada “Orixás, Caboclos e Guias: Deuses ou Demônios?”. Ao todo serão exibidos 36 programas na grade de cada emissora, até o mês de setembro.
O advogado representante do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e da Desigualdade (CEERT), uma das organizações responsável pela ação, Hédio Silva Júnior, disse que a vitória da ação pública nos tribunais é um marco para o início de uma longa jornada contra o racismo religioso. Para ele é muito difícil o judiciário criminalizar práticas de racismo.
“As emissoras valeram-se de sucessivas manobras protelatórias, provocaram vários incidentes processuais, ingressaram com todos os recursos possíveis, protelaram julgamentos, enfim, fizeram de tudo para evitar um pronunciamento final. Trata-se de um caso raro de direito de resposta coletivo, que felizmente teve um desfecho positivo”, destaca o advogado.
Ainda na visão do advogado a forma da aplicação do direito de resposta – neste caso a exibição de programas – se contrapõe à representação preconceituosa e racista presente nos programas exibidos pelas emissoras. “Trata-se de uma das mais importantes vitórias judiciais obtidas pelas religiões afro-brasileiras, que reconhece que o sentimento religioso do povo de Axé não é menos relevante do que o sentimento de qualquer outro grupo religioso” pondera o advogado.
Religiões de matriz africana são o principal alvo de intolerância religiosa no Brasil
Dados oficiais apontam que os ataques às religiões de matriz africana aumentaram nos últimos anos. De acordo com o Disque 100, canal do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos para denúncia anônima pela população, foram feitas 213 notificações de intolerância religiosa a matrizes africanas, de janeiro a novembro de 2018. Os dados foram obtidos por meio da Lei de Acesso à Informação e exibidos em reportagem pelo Portal G1.
O número é 47% maior do que o registrado em todo o ano de 2017, quando foram recebidas 145 denúncias. Se em 2014 elas correspondiam a 15% do total de denúncias, hoje representam 59% do número total de reclamações. Ou seja, em um ano em que as queixas de intolerância religiosa caíram, as agressões a praticantes de candomblé e umbanda aumentaram. Há ainda que ser considerada as violações que não foram notificadas.
Diante de um quadro crescente de agressões de caráter racista, a vitória das religiões de matriz africana configura-se como exceção. Hédio acredita que a ação civil só obteve o positivo desfecho graças a precedentes votados recentemente pelos tribunais superiores, como é o caso do sacrifício de animais em rituais religiosos . Ele chama atenção para a necessidade de que os canais de televisão representem a diversidade do nosso país. Isso porque, como concessionárias do sinal concedido pelo Estado brasileiro, as empresas proprietárias dos canais de televisão devem priorizar conteúdos educativos e de respeito à valores, como determina o Artigo 221 da Constituição Federal.
“Essa ação é emblemática porque, em sintonia com precedentes do STF (Supremo tribunal Federal) e do STJ (Superior Tribunal de Justiça), realça a linha divisória que separa o discurso do proselitismo religioso, propagado pelos meios de comunicação social, do discurso ofensivo, de ódio, de violência simbólica que dissemina, incita e induz à violência verbal e física contra os fiéis das religiões afro-brasileiras” pondera o advogado ao relatar a dificuldade de se ter o direito de liberdade religiosa garantidos no Brasil.
A coordenadora nacional da Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde (Renafro), Mãe Nilce, enfatiza que o fato ocorrido nas emissoras de televisão representam o cotidiano racista enfrentado pelas religiões de matriz africana no Brasil. Ela defende que sejam implementadas políticas públicas para enfrentar a realidade de violências sofridas pelas religiões afro-brasileiras.
“Assuntos ligados a população negra e ao povo de tradição de matriz africana simplesmente não interessam ao poder público. Caso houvesse interesse já teríamos uma política pública que nos oferecesse proteção contra a violência da intolerância religiosa” finaliza a representante da Renafro.
Falhas no direito de resposta
O direito de resposta, apesar de ser um direito fundamental, garantido pela Constituição, já foi questionado quando o Supremo Tribunal Federal julgou inconstitucional a Lei Imprensa. Todavia, no final de 2015, entrou em vigor a Lei nº 13.188/2015, que passou a regulamentar novamente direito de resposta no Brasil. O mecanismo é utilizado quando uma pessoa ofendida por alguma publicação veiculada pelos meios de comunicação tem de requerer que aquele que publicou a matéria ofensiva publique também uma resposta proporcional, na qual é contada a versão do ofendido.
Tramita na Câmara dos Deputados um projeto de lei que busca incluir os grupos sociais como categoria a ser compreendida pela Lei de Direito de Resposta. O PL 4336/2016, de autoria da deputada Luiza Erundina (PSOL/SP), aguarda parecer do relator da Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática (CCTCI) da Câmara. A parlamentar justifica que atualmente o direito não é garantido plenamente a grupos não regularizados, ou seja, que não possuem CNPJ e por isso dependem da atuação do Ministério Público para que sejam abertos os pedidos.
O projeto este ano foi avaliado pelo Conselho de Comunicação Social do Congresso Nacional, sendo fortemente defendido pelos conselheiros representantes da sociedade civil. No entanto, foi rejeitado pelo relator, conselheiro João Camilo Júnior, representante das empresas de rádio. Camilo Júnior argumentou que a aprovação do projeto pode gerar uma demanda desnecessária para o Judiciário.
De acordo com Mãe Nilce a visão distorcida da realidade, transmitida por boa parte dos veículos de comunicação de massa, geram sérios problemas à população brasileira. Para ela a transmissão dos programas pela Lei de Direitos de Resposta, após 15 anos de tramitação do processo, é muito pouco se comparado aos impactos gerados pela representação racista das religiões de matriz africana. No entanto, ainda assim a decisão dos tribunais deve ser comemorada, aponta a mãe de santo.
“Seria bem melhor que que esse direito adquirido pelo povo de matriz africana fosse transmitido em horário nobre, mas mesmo assim nos contempla o simples fato de sermos reconhecidos. Queremos que respeitem a nossa fé.” enfatiza Mãe Nilce
*Sob Supervisão de Lizely borges